É tempo de uva Niágara!

Em São Paulo, o desenvolvimento da produção dessa uva contou com a influência da colonização italiana e o trabalho em família

Por Henrique Oliveira
É tempo de uva Niágara!

Há algum tempo, nas gôndolas de supermercados, feiras, varejões e outros pontos de comercialização, nos deparamos com uma infinidade de variedades de uva: verdes, roxas, pretas*; com bagas grandes e pequenas; sem e com sementes. Mas, chegada à época das festas de final de ano, as tradicionais caixinhas de madeira com cachos arroxeados dominam o cenário, como prenúncio de almoços em família e amigos, com mesas enfeitadas de frutas! Essa é a uva Niágara.

Popularmente conhecida como uva rústica ou comum de mesa, ela é uma variedade originária dos Estados Unidos da América, pertencente à espécie Vitis labrusca. De acordo com relatos históricos teve origem em 1868, a partir do cruzamento das variedades Concord x Cassady. No Brasil, a variedade Niágara Branca foi introduzida em 1894, no Estado de São Paulo, disseminando-se na região, atualmente conhecida como Circuito das Frutas, que englobam municípios com grande produção dessa uva, entre os quais Indaiatuba, Jundiaí, Louveira, Vinhedo, Itupeva e Jarinu.

O fato marcante que elevou a Niágara ao patamar de principal variedade de mesa no Brasil, aconteceu em 1933, em Jundiaí, especificamente no Bairro Traviú do Distrito de Louveira (hoje município com expressivo cultivo de uva). Quem conta essa história é o produtor Anderson Alex, membro da quarta geração da família Tomasetto, cuja tradição na produção de uva teve início com o seu tataravô, que, em 1893, comprou a fazenda Traviú com mais três famílias, a qual deu origem ao bairro. “Relatos históricos mostram que a família do fazendeiro Antonio Carbonari ganhou dois galhos de uva Niágara Branca da Fazenda Malota (hoje bairro de Jundiaí) do produtor Benedito Marengo, que os trouxe dos EUA. Ele plantou e, após algumas colheitas da variedade Branca, foram encontradas entre dezenas de cachos brancos, três cachos com bagas rosadas (fenômeno que do ponto de vista agronômico é resultado de uma mutação somática). O produtor vendo que era uma uva doce, resolveu cortar alguns pés de uva Isabel, enxertar os ramos da rosada, iniciando um plantio comercial. A partir daí, a produção de Niágara Branca foi substituída aceleradamente pela sua mutação rosada, o que a estabeleceu como principal uva de mesa e tornou a região o maior centro produtor, com a 1.ª Festa Uva de Jundiaí sendo realizada em 1934”, conta, relembrando a estratégia de marketing utilizada para a aceitação da uva rosada: “A produção de Niágara Branca já era grande quando surgiu a Rosada, tendo sua comercialização se estendido para o Rio de Janeiro (maior centro comercial da época), para onde era levada de trem. Um dia, o produtor Carbonari enviou algumas caixas da rosada e recebeu a resposta dos comerciantes de que ninguém queria comprar. Ele então enviou mais caixas com um bilhete, dizendo que aquela era uma variedade superior e mais doce e deveria ser vendida mais cara. Em pouco tempo, as rosadas eram as mais pedidas pelos compradores!”.

Em São Paulo, o desenvolvimento da produção dessa uva contou com a influência da colonização italiana, com seus costumes, conhecimentos técnicos tradicionais sobre o manejo das videiras, e o trabalho em família. “Pode-se dizer que isso influenciou os cultivos paulistas, que em sua maioria são conduzidos em pequenas áreas, geridas por famílias que passam a paixão pela atividade de geração em geração”, explica Luiz Carlos Mollo Alarcon, engenheiro agrônomo Secretaria de Agricultura e Abastecimento, que atua desde 1976 na Casa da Agricultura de Louveira, ligada à CDRS (Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável) – Regional Campinas.

Nesse contexto da produção familiar, a engenheira agrônoma Flávia Regina Pestana Tirlone, responsável pela Casa da Agricultura de Jundiaí, analisa que, para a manutenção e expansão da produção de uva nesta região, onde tudo começou, é preciso investir cada vez mais na agregação de valor e valorização dos aspectos culturais envolvidos. “Aqui na região existe um grande problema de escassez de mão de obra, envelhecimento dos produtores e especulação imobiliária por conta da proximidade com a capital. Com uma história tão rica com a cultura da uva, acredito que o fortalecimento da produção na região e a manutenção dos produtores e seus descendentes na atividade passam pela agregação de valor e pelo resgate da produção de vinho, que sempre foi uma atividade artesanal desenvolvida pelos ‘nonos’ (vovôs em italiano), inclusive com uva Niágara, como eles tradicionalmente faziam. Digo isso, pois temos bons exemplos de famílias que estão percorrendo esse caminho com sucesso, na Rota da Uva que já está implementada aqui”.

Atualmente, ao lado do Circuito das Frutas, outras duas regiões são expoentes na produção de uva Niágara. “Com avanços nas pesquisas em regiões de climas tropicais e subtropicais, o sudoeste (região de São Miguel Arcanjo e Pilar do Sul – ligada à área de atuação da CDRS Regional Itapetininga) e noroeste paulista (região de Jales – ligada à área de atuação da CDRS Regional Jales) tornaram-se polos de produção, sendo que o sudoeste vem se destacando. Por conta das condições climáticas diferentes entre as regiões, essa ‘dispersão do cultivo’ possibilitou a produção, praticamente o ano inteiro no Estado, haja vista que as safras acontecem de dezembro a fevereiro/abril a junho, no Circuito das Frutas, que está na região leste do Estado; fevereiro a abril, na região sudoeste; e agosto até novembro na região noroeste”, explica José Luis Hernandes, pesquisador da Secretaria de Agricultura, que atua na área de desenvolvimento em viticultura e enologia (estudo de vinhos) do IAC (Instituto Agronômico), de Campinas.

Comercialização

A uva Niágara tem uma comercialização ampla, em diversos canais, inclusive em vendas diretas de produtores. Segundo dados estatísticos da Seção de Economia e Desenvolvimento, da Ceagesp (Companhia Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo),em 2019, na entidade foram comercializadas 55.359,55 toneladas de uva, sendo 10.306,55 toneladas de uva Niágara (18,62%,), das quais São Paulo foi responsável por 85,61%.“No sistema Prohort da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), consta que nas principais Centrais de Abastecimento (Ceasas), a comercialização foi de 24.810,71 toneladas”, informa Hélio Satoshi Watanabe, engenheiro agrônomo do Centro de Hortigranjeiros da Ceagesp.

Pesquisa e extensão rural: trabalho integrado embasou o desenvolvimento da Niágara em São Paulo

Nos anais do Centro Avançado de Pesquisa do Agronegócio de Frutas (antiga Estação Experimental de Jundiaí, criada em 1936), unidade ligada ao IAC, os primeiros registros de pesquisas com a uva Niágara datam da década de 1950. Entre as principais pesquisas realizadas pela unidade, o pesquisador José Luis destaca o desenvolvimento de porta-enxertos tropicais, entre os quais o Campinas –IAC 766, principal porta-enxertos de São Paulo. “Uma das grandes vantagens e contribuições desse porta-enxerto foi aumentar a produtividade e adaptabilidade às condições do cultivo da uva Niágara nas condições subtropicais e tropicais que temos no Estado. Também contribuiu para melhorar a qualidade da uva”, explica, destacando também os diversos experimentos fitossanitários que contribuem para o controle de pragas e doenças na viticultura.

Na última década, como maior avanço em tecnologia de produção para a uva (não apenas a Niágara), o pesquisador aponta a mudança no manejo de podas, que resultou na introdução do sistema de condução em Y, como substituição à tradicional espaldeira. “Com a introdução desse sistema, houve o aumento da produtividade e otimização da mão de obra, que tem sido escassa nos últimos tempos. Quando associado à produção em ambiente protegido (tecnologia introduzida pelo IAC), possibilita junto com o aumento da qualidade da fruta, uma redução de cerca de 70% do uso de defensivos agrícolas”.

Na área de extensão rural, a grande contribuição, além do trabalho técnico de campo, são a execução de políticas públicas pelas Regionais e Casas da Agricultura da CDRS e a edição de publicações técnicas, bem como os avanços na área de produção de mudas, os quais são significativos. “Desenvolvido pelo Núcleo de Produção de Mudas (NPM) São Bento do Sapucaí, o sistema de enxertia por borbulha em minilatada é uma tecnologia pioneira em relação à muda de raiz nua (plantada direto no campo), o qual permite a produção de mudas com qualidade sanitária. Atualmente, novos experimentos estão sendo conduzidos pela unidade em parceria com o Centro de Frutas do IAC para aprimorá-lo e reduzir os custos das mudas para os produtores rurais”, informa Ednei Marques, diretor do NPM de São Bento do Sapucaí, orientando os produtores para que, antes da implantação do parreiral, busquem orientação técnica, visitem viticultores experientes e adquiram mudas de viveiros idôneos, pois a fase de implantação do parreiral pode definir o sucesso ou não da atividade. Atualmente, nos Núcleos de São Bento do Sapucaí e Marília são produzidas e comercializadas cerca de 10 mil mudas de uvas anualmente, das variedades Niágara Rosada e Branca, Isabel, Isabel Precoce, Bordô e Concord, que podem ser adquiridas pelo telefone/WhatsApp (12) 3971-1306 e e-mail npmsaobentodosapucai@sp.gov.br / (19) 99685-8798-npmmarilia@sp.gov.br

Produtores falam sobre a experiência com a cultura e o trabalho da Secretaria

Com uma herança de quatro gerações, José Walter Pagotti, 74 anos, mostra com orgulho a sala repleta de prêmios conquistados em concursos de frutas, onde a uva cultivada nas Chácaras Guarani, em Louveira, ganhou destaque pela qualidade. “A história da minha família com a atividade começou com o meu avô que veio da Itália no início do século 20. Ele começou trabalhando nas lavouras de café em Valinhos, na Fazenda Macuco; depois de alguns anos conseguiu comprar o sítio, onde iniciou o cultivo de uva. Desde a época do meu pai ganhamos muitos prêmios, incluindo uma medalha da 1.º festa realizada em Jundiaí, em 1934; e uma ganha por mim, na festa de 1958. De lá pra cá, buscamos conhecimento e aprimoramos o manejo das parreiras que hoje são cultivadas pelo sistema Y (desenvolvido pelo IAC) em ambiente protegido, contamos com o apoio dos pesquisadores e o do Alarcon da Casa da Agricultura, com quem a gente troca muita experiência”, conta o viticultor que trabalha a área de 10 hectares – onde colhe cerca de 35 mil caixas por ano de Niágara Rosada e uma pequena quantidade de Branca, para atender os entusiastas da variedade – com apoio do irmão e da irmã. “Eu adoro trabalhar com a uva e tenho muito orgulho. Comercializo a maior parte da minha produção com um atacadista da Ceagesp que valoriza a qualidade do meu produto, e uma pequena parte vendo direto na chácara”.

O produtor Anderson Alex Tomasetto adotou o sistema em Y e relata os ganhos em sua área de 2,5 hectares, no sítio Sertãozinho, em Jundiaí. “Mais de 90% da área são cultivados pelo sistema, que proporcionou um aumento na produtividade, resultando em uma colheita entre 12 e 15kg por planta, praticamente o ano todo; estamos adaptando os espaçamentos para aumentar mais. Além disso, houve um grande ganho na qualidade da uva, o cacho fica mais pesado e bonito; isso, porque o sistema permite mais fotossíntese por ter mais sol nas folhas, maior ventilação entre as plantas, que crescem mais distantes do solo, o que diminuiu o problema com umidade e melhora o manejo e a pulverização; ou seja, só tem vantagens. Estou sempre em contato com os pesquisadores e extensionistas para obter cada dia mais conhecimento, pois fiz a opção de ter uma produção menor, mas com grande qualidade”, avalia Alex, que trabalha no sítio ao lado do tio de 83 anos, comentando que a produção é toda familiar. “Eu fiquei na propriedade, apesar de todas as intempéries, pois está no sangue trabalhar com uva”, diz, o produtor de 36 anos, brincando que em suas veias corre suco de uva e enfatizando que, para obter sucesso na atividade e preços melhores no mercado, é preciso profissionalismo, gestão e adoção de novas tecnologias que aprimorem a qualidade.

Propriedades nutricionais da uva

Desde as primeiras civilizações, a uva é representada como um importante alimento nas mais diversas culturas. Segundo estudos, a uva e seus derivados – vinho e suco- se destacam como alimentos saudáveis e funcionais. “Do ponto de vista nutricional, são boas fontes de carboidratos, importantes no fornecimento de energia para o corpo, contêm vitaminas do complexo B, pequeno teor das vitaminas A e C, bem como dos minerais ferro, cálcio, magnésio, cobre e boas quantidades de potássio. “A uva também contém pectina, que é uma fibra alimentar solúvel que previne o acúmulo de colesterol no sangue e nas artérias, controla o índice glicêmico e promove a sensação de saciedade. Especialmente nas cascas das uvas rosadas ou escuras, encontra-se uma molécula chamada resveratrol, que ajuda na prevenção de trombose e protegem o sistema cardiovascular. Além disso, as propriedades antioxidantes da uva e seus derivados evitam a formação de radicais livres e previnem contra algumas doenças crônico-degenerativas”, explica a nutricionista Beatriz Cantusio Pazinato, diretora da Divisão de Extensão Rural (Dextru/CDRS), salientando que a fruta é versátil, podendo ser consumida in natura, como ingrediente em sobremesas e nas formas milenares de vinhos e sucos.

Curiosidades: Você sabia que…

A uva Niágara Rosada tem coloração roxa e a Niágara Branca é de coloração verde-amarelada? A explicação, segundo o pesquisador José Luiz Hernandes, do IAC, é de que se convencionou na viticultura (cultivo de uva) classificar todas as variedades de uva em brancas, rosadas e tintas (as de coloração preta).

A uva Niágara foi batizada com este nome em homenagem às Cataratas do Niágara, composta por três famosas quedas d’água localizadas em um rio entre os lagos Erie e Ontario, sendo que a mais conhecida é Horseshoe, a qual fica na divisa entre os Estados Unidos e o Canadá? Isso aconteceu, pois a uva é originária do Condado de Niágara (que fica próximo à essa divisa), no Estado de Nova York.

Via Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo

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